Era logo após o meio dia, mas o sol a pino se escondia atrás das espessas nuvens brancas que evaporavam lentamente ao calor do sol fantasma. Todos já haviam almoçado e saído da água esverdeada de algas do lago, afinal, os peixes pareciam deixar de existir àquela hora do dia. A lagoa foi deixada exceto por dois insistentes pescadores que se encontravam separados por 50 metros de água. Distância que parece dobrar-se sob o ponto de vista dos pescadores. O primeiro barco, à esquerda da pequena plateia de barriga cheia que os observava incrédula da margem, era de tamanho médio, comportando até 4 pessoas. Seu tripulante era o “velho pintado”, como os outros habitantes da vila haviam-no apelidado já que só comia peixe pintado e nunca dizia seu nome nem se comunicava além de um ou dois balançares de cabeça. Ele parecia impaciente, caminhando de um lado a outro do barco e parecendo estar tentando tirar alguma coisa da água, mas o que realmente estava fazendo era impossível de identificar devido à distância que estava da margem.
O segundo barco, à direita dos observadores que de incrédulos tornaram-se curiosos, estava o reverendo Francisco, que havia trocado a vida na cidade para atender aos necessitados em sua cabana isolada próxima ao lago, já que seus métodos não eram aceitos de bom grado pelo padre, dois ministros, pelo ferreiro, e pelo comerciante de laranjas da vila, que trataram de espalhar para todos que ele não era “boa gente”. Ainda assim, Francisco era adorado por todos que conseguiam trocar mais de 17 palavras com ele. Todos os que estavam ali o assistindo, sabiam de seus feitos, inclusive um que mudou a vida de todos havia um ano: estabelecer uma fartura inesgotável de peixes no lago; fartura que durava apenas das 5h às 8h da manhã e das 19h às 22h da noite. Parecia milagreiro. Ninguém entendia porque não mordiam as iscas em outros horários, mas todos aceitavam a estranha escala de funcionamento sem contestar. Foi depois de um dia nublado que Francisco embrenhou-se sozinho no lago ao meio dia e voltou só três dias depois, após intensas e improdutivas buscas de seus amigos preocupados com seu sumiço, anunciando a erradicação da fome na vila. “Podem testar, os peixes são da melhor qualidade”, e acrescentou em voz alta quando viu que alguns pescadores já estavam se preparando para zarpar — “eles morderão a isca apenas nos primeiros e últimos raios de sol do dia”, e com seriedade, ordenou — “Agradeçam a cada peixe que morder a isca, ou eles nunca mais entrarão em seu barco novamente”.
Eis o motivo do espanto de seus colegas quando viram Francisco pescando ao meio dia. Seu barco sempre foi muito pequeno, talvez parecesse ainda menor pelo fato de Francisco ser um homem corpulento e comprido. Seus amigos caçoavam quando viam Francisco tirando um cochilo em seu barco com os pés vazando para fora do casco pelos lados, já que suas pernas eram muito longas para caber do lado de dentro. Naquelas águas calmas, subitamente, o grande homem se levantou em seu barco com rapidez e começou a fazer movimentos firmes usando as duas mãos, segurando uma grossa linha de pesca como se estivesse empinando pipa de cima para baixo. Fez isso por 30 minutos, e então, ainda segurando a linha, pegou o remo e começou a retornar à margem. Aos poucos, todos começaram a se levantar e sair de seus quiosques de bambu, pisando sobre a terra pedregosa da margem que criava um rufar de tambores (ou de pedras) que antecipava a chegada de Francisco. Foi possível começar a ouvir o som do remo e do casco de seu barco batendo contra as micro-ondas do lago e se aproximando da margem quando, de supetão, um esguicho de água jorrou alcançando 15 metros de altura e encharcou os curiosos da margem, dos quais alguns riam e outros soltavam involuntários palavrões enquanto corriam. Francisco atracou o barco e então começou a puxar e trabalhar a grossa linha que ainda segurava firme. Com estranha calma, a criatura que estava presa do outro lado da linha com algo que parecia mais um gancho do que um anzol, começou a emergir lentamente da água esverdeada. Era de tons azuis que brilhavam em púrpura quando leves raios de sol começavam a dar as caras por entre as nuvens brancas, revelando o azul do céu. O ser era um pouco maior que o barco de Francisco, esguio, mas musculoso quando visto de perto. Possuía barbatanas laterais e superiores, como as de um tubarão, e um respiro no topo da espinha frontal, como uma baleia. Duas fileiras de dentes pontudos pareciam sumir na escuridão de sua traqueia. Francisco disse, quando viu o semblante amedrontado de seus amigos: “não se preocupem, ela é serena como este lago. Não irá fazer mal a ninguém”. E então enfiou a mão esquerda, até encobrir seu ombro, dentro da guelra da criatura e, assim, litros de água começaram a escorrer pelas pedras da margem. Ele foi até o outro lado e fez o mesmo. Perguntei ao meu pai o motivo do reverendo ter feito isto, e meu pai disse que a criatura não pertencia mais ao lago, mas à terra firme. Para falar a verdade, isso me deixou ainda mais confuso. Então Francisco, com um gesto tenro, colocou sua mão entre os olhos da criatura e, pesada como uma árvore anciã, o animal caiu sobre as pedras causando um considerável tremor. Francisco então disse, enquanto espalhava uma fumaça branca com cheiro de louro em volta do ser, usando um instrumento circular que havia pegado em seu barco: “Isto, sim, é um peixe, meus amigos. O último desta farta temporada. Iremos dividi-lo assim que o Velho Pintado voltar de sua pescaria”.
Todos haviam esquecido do velho, e olharam para ver se ainda estava lá. Ele já se aproximava da margem, em pé e com olhos pesados de lágrimas que se acumularam nas pálpebras e se recusavam a cair. O velho chegou à margem e, enquanto todos rodeavam seu barco, pegou uma rede de pesca na qual carregava algo de pelos dourados. Ele desembrulhou o corpo da rede e todos viram que era um cão de grande porte; um animal lindo que, assim como o peixe, brilhava e mudava de cor com os raios de sol. Então, pela primeira vez, as pessoas ouviram a voz do velho: “Este é meu cão, Jonah, que sumiu alguns dias antes da temporada mágica de pesca começar. Francisco falou que iria me ajudar a encontrá-lo, vivo ou morto. Fico feliz de tê-lo encontrado, mesmo que neste estado, para dar o meu último adeus”. Francisco se aproximou com seu instrumento circular e ungiu o cão com a mesma fumaça branca. Não perguntei ao meu pai o motivo daquele gesto pois, apesar de não ter entendido logicamente, senti que era o certo a ser feito. Todos, inclusive eu, demos condolências ao velho. Francisco não dirigiu uma palavra ao velho, em vez disso, foi até seu barco e pegou uma faca extremamente afiada e comprida como uma espada, para começar a árdua tarefa de limpar o grande peixe. Até hoje isto permeia meus pensamentos e a realidade se mistura com sonhos. Quando Francisco desceu o primeiro golpe, os olhos de Jonah, o cachorro, se abriram cheios de vida.
Texto e ilustração: Lucas Piaceski